Histeria - Apresentações Clínicas Contemporâneas

A histeria sempre ocupou lugar de destaque na medicina, sobretudo na investigação de doenças funcionais e psicossomáticas, transtornos de personalidade ou queixas pouco compreendidas, sobretudo em mulheres. Na atualidade, com as novas classificações psiquiátricas e com o advento dos manuais de classificação da Associação Psiquiátrica Americana, a partir dos DSM-III e IV (Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais) o termo histeria foi desmenbrado, sendo redesignado sob novas nomenclaturas diagnósticas.

Os sintomas sensitivos e motores atribuídos à histeria passaram a ser chamados somatoformes (incluindo aqui a conversão e a somatização), e as manifestações psicológicas passaram a ser denominadas dissociativas. Ainda que a separação traga inúmeras vantagens, ela privelegia estudo de sinais e sintomas, descontextualizando significados sociais e pessoais que eles possam ter. Atualmente a histeria reside nos quadros clínicos onde há dúvida diagnóstica, sintomas múltiplos e mal definidos, queixas persistentes e até mesmo uma relação médico-paciente conflituosa.

PANORAMA HISTÓRICO

Embora atribuída a Hipócrates, a palavra histeria não foi utilizada por ele, que denominava essa condição como sufocação da matriz. Segundo Platão, em O Timeu, “...na mulher, o que se chama de matriz ou útero seria como um ser vivo, possuído do desejo de fazer crianças. Quando, durante muito tempo, e apesar da estação favorável a matriz permanece estéril, ela se irrita perigosamente; ela se agita em todos os sentidos pelo corpo, obstrui as passagens do ar, impede a inspiração, mete o corpo, assim, nas piores angústias e lhe ocasiona outras doenças de todas as espécies”. No século XVII o termo denominava os sintomas decorrentes da mudança de posição do útero no corpo da mulher, como descrito por Libau, em 1609, “embora estreitamente ligada às partes que descrevemos, de modo a não poder mudar de lugar, na maioria das vezes muda de lugar e faz movimentos bem acentuados e estranhos ao corpo da mulher”. Raulin, em 1758, acentua a relação entre a histeria e o gênero feminino: “essa doença, na qual as mulheres inventam, exageram e repetem todos os diferentes absurdos de que é capaz uma imaginação desregrada, por vezes tornou-se epidêmica e contagiosa”. No século XIX, com o avanço das ciências naturais, a histeria passou a ser atribuída à enfermidades nervosas e neuroses. Nos trabalhos de Babinski foi considerada como derivada da sugestão, sendo passível de cura com o poder da persuasão, sendo Babinski o autor do termo pitiatismo, cujo significado etimológico é cura pela persuasão. Em 1895, na obra Estudos sobre a histeria, uma coautoria de Freud e Breuer, a histeria é sugerida como causada por eventos traumáticos vividos precocemente, que exerceriam uma ação remota na vida do indivíduo. Posteriormente Freud passa a atribuir cada vez mais importância a repressão dos impulsos, sobretudo sexuais, como fator primário constitutivo da histeria. Em 1923, Freud caracteriza a histeria como “a defesa necessária contra as demandas libidinosas do complexo de Édipo”. Após Freud a histeria passou por diversas transformações diagnósticas, fortemente influenciadas pelos avanços científicos da fisiologia e neurologia, além da marcante presença das classificações dos manuais diagnósticos, adquirindo o seu status atual como um legado de múltiplos quadros sintomáticos, que pouco consideram a pessoa que sofre como participante de complexas relações com o meio que a cerca.

SOMATIZAÇÃO

Termo criado em 1943 por Stekel para definir um “distúrbio corporal que surge como expressão de uma neurose profundamente assentada, uma doença do insconciente”. A somatização pode ser entendida hoje como sintomas somáticos ou queixas físicas inexplicáveis, como uma preocupação somática excessiva, ou ainda como uma apresentação de sintomas físicos no contexto de um transtorno mental como transtornos do humor ou de ansiedade.

Até o DSM-IV o diagnóstico de Transtorno de Somatização era atribuído a pacientes jovens, com menos de 30 anos, com queixas físicas de dor em múltiplos locais e sintomas grastrointestinais, acarretando prejuízo funcional, social ou ocupacional e resultando em busca por tratamento. Na atual edição do manual esta categoria nosológica foi removida, bem como outras correlatas como Transtorno Somatoforme Indiferenciado e Hipocondria, em grande parte devido à arbritariedade destes diagnósticos, que excluiam queixas somáticas menos robustas, bem como pelo caráter pejorativo dos mesmos. Foi introduzido em contrapartida o Transtorno com Sintomas Somáticos. O diagnóstico do Transtorno com Sintomas Somáticos é aplicado a indivíduos que apresentam qualquer número de sintomas somáticos, desde que acompanhados por pensamentos, sentimentos ou comportamentos excessivos relacionados à sua saúde, como por exemplo a busca incessante por diferentes profissionais de saúde e um nível exagerado de ansiedade e preocupação quanto a gravidade do sintoma.

O diagnóstico de Transtorno com Sintomas Somáticos não deve ser suspeitado de maneira prematura, sendo necessário antes uma anamnese e exame físico detalhados e a exclusão de causas orgânicas que justifiquem as queixas. Quando não reconhecidos e tratados de maneira apropriada, estes pacientes podem ser submetidos a exames e encaminhamentos desnecessários, passando por intervenções que os expõem a riscos e iatrogenias, e que não contribuem para a diminuição de seu sofrimento, além de acarretarem custos elevados para o sistema de saúde.

Frequentemente a avaliação destes pacientes provoca irritação e rejeição por parte do examinador, em função da insconsistência e exagero das queixas, o que leva a uma deterioração da relação médico-paciente. Os profissionais de saúde devem compreender que a somatização está além do domíno racional, buscando confortar os pacientes e assegurá-los que não sofrem de uma doença ameaçadora à vida, mas de uma afecção médica real, que merece atenção, reconhecendo assim o sofrimento que ele está sujeito. Esta abordagem tranquiliza os pacientes, reconhece seu sofrimento, e também as limitações de tratamento disponíveis.

As doenças clínicas denominadas de doenças psicossomáticas são aquelas que, a despeito de uma etiologia clara ou parcialmente compreendida, sofrem importante associação com estressores psicológicos ou psicossociais, são exemplos: asma, doenças dispépticas, hipertensão arterial sistêmica, psoríase, lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatóide e retocolite ulcerativa. Nesses casos não se trata de somatização, já que há uma explicação causal para os sintomas físicos apresentados.

Síndromes clínicas funcionais devem ser diferenciadas de somatização, uma vez que ainda que não causem alterações detectáveis por exames complementares, apresentam critérios diagnósticos próprios, baseados suas apresentações clínicas e história natural. Os exemplos mais importantes são: fibromialgia, síndrome do cólon irritável e fadiga crônica.

Na suspeita de sintomas intencionalmente produzidos deve-se investigar casos de simulação, onde há o objetivo de ganhos secundários, como aposentadorias, afastamento do trabalho, ganho de pensão ou redução de pena judicial.

CONVERSÃO E DISSOCIAÇÃO

O termo conversão foi empregado inicialmente por Sigmund Freud e Josef Breuer em 1894, para designar um sintoma motor causado por uma ideia reprimida. Dissociação surgiu nos trabalhos de Pierre Janet, em 1907, como uma “informação que é mantida fora da consciência, de forma inalterada, mas exerce efeitos em funções motoras/sensoriais através de mecanismos inconscientes, originando os sintomas dissociativos”.

Atualmente considera-se como conversão a presença de sintomas motores ou sensoriais não explicados por doença neurológica, uso de substância ou outra condição médica. A dissociação é definida como uma alteração funcional da consciência, memória, identidade ou percepção do ambiente. Nos dois casos considera-se que a causa seja mecanismos psicológicos inconscientes e que os sintomas são involuntários, podendo ocorrer no contexto de outros transtornos mentais, ou como transtornos independentes.

Os sintomas dissociativos mais comuns são amnésia, despersonalização, sensação de estar “fora do corpo”, sensação de irrealidade ou experiência de estar em “transe” ou “de possessão” por entidades místicas.

São fatores implicados no aparecimento de sintomas conversivos e dissociativos experiências traumáticas em fases precoces da vida e a presença de estressores recentes, como problemas psicossociais ou conflitos insolúveis.

SOFRIMENTO DIFUSO E TRANSTORNO MENTAL COMUM

O diagnóstico de transtorno mental comum é uma classificação possível para usuários do sistema de saúde com queixas somáticas inespecíficas. Embora possa representar uma psiquiatrização excessiva da vida, atribuindo uma categoria nosológica para problemas rotineiros das sociedades modernas, o transtorno mental comum é uma denominação que procura caracterizar pacientes que sofrem de manifestações depressivas, ansiosas ou somatoformes sem enquadrarem-se nestas categorias, permitindo uma melhor compreensão destes, bem como a criação de estratégias para enfrentamento dessa problemática. O fato de um paciente com sintomas de ansiedade não se enquadrar nos critérios diagnóstico de um transtorno de ansiedade não faz com que seu sofrimento seja menos relevante e suas necessidades não mereçam atendimento e acolhimento. O termo sofrimento difuso, cunhado por Valla em 2001, denomina queixas somáticas inespecíficas, como dores de cabeça e no corpo, insônia e desconforto gastrointestinal, e que não são classificáceis em outras categorias diagnósticas. O termo foi proposto no intuito de classificar pacientes antes tidos como poliqueixosos ou histéricos, permitindo o reconhecimento de um problema médico, valorizando suas queixas e ampliando a percepção do contexto da pessoa em sofrimento.