A clínica das Anorexias e Bulimias

A CLÍNICA E OS TRANSTORNOS ALIMENTARES

O termo clínica, com origem etmológica no termo klinein, significa leito e originalmente designa aquilo que ocorre junto ao leito do paciente, o que é aprendido ao lado do paciente e que transcende o aprendizado oriundo de livros e manuais. Atualmente, no entanto, o termo é usado para descrever um modelo médico de assistência centrado no diagnóstico e na terapêutica, amplamente baseado em estudos e protocolos estatísticos, onde a beira do leito do paciente e a realidade individual tem menor significado.

Os avanços científicos permitiram um entendimento profundo dos mecanismos celulares e moleculares das doenças, e com as modernas ferramentas diagnósticas é possível compreender as causas das enfermidades com base nas alterações funcionais e estruturais provocadas pelo adoecimento. Apesar dos incontáveis benefícios trazidos por esses avanços, uma perspectiva reducionista propagou-se pela medicina, partindo de um discurso positivista de que o único conhecimento válido é aquele produzido pelo método científico, e relegando ao segundo plano a subjetividade individual, a experiência do adoecimento e tudo aquilo não passível de objetivação e quantificação numérico-estatística.

A psiquiatria, como especialidade médica, não apresenta uma realidade diferenciada. Estudos clínicos controlados, capazes de garantir tratamentos padronizados e critérios diagnósticos claros são altamente valorizados. O Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais representa esse anseio da comunidade médica psiquiátrica em classificar os fenômenos do adoecimento psíquico de forma facilmente observável, delimitando com precisão o normal e o patológico, baseando-se amplamente na generalização estatística do sofrimento mental e na necessidade da indústria farmacêutica de identificar com clareza aqueles aptos a consumirem psicofármacos.

São indiscutíveis os benefícios que os avanços antes mencionados propiciaram aos pacientes. E apesar do tom de crítica aqui empregado, muito se avançou. Diagnósticos mais precisos e precoces, tratamentos eficazes e muito mais surgiram daí. No entanto, é fundamental que o não evidente também seja valorizado, que a clínica não se reduza a um saber simples e generalizado, mas sim permaneça em seu sentido clássico, sendo aprendida caso a caso, no leito de cada paciente. No tratamento da anorexia e da bulimia nervosa, transtornos alimentares discutidos adiante, essa visão do indivíduo como uma pessoa doente e não como uma doença é primordial, já que os protocolos e tratamentos farmacológicos apresentam resultados insatisfatórios em proporcionar melhora a esses pacientes.

 

ANOREXIAS E BULIMIAS

Os transtornos alimentares são caracterizados por uma perturbação persistente na alimentação ou no comportamente relacionado à alimentação, de tal forma que haja um comprometimento da saúde física ou do funcionamento psicossocial. A anorexia nervosa e a bulimia nervosa são entidades nosológicas enquadradas neste grupo. A etiologia nesses casos é complexa e multifatorial e os aspectos subjetivos do adoecimento do paciente são marcadamente evidentes. A deformação da imagem corporal, presente em ambos os transtornos, sofre forte influência de uma percepção alterada do Ideal do Eu, onde o eu do indivíduo se compara à um ideal e passa então a reinvidicar um aperfeiçoamento que o aproxime disto. A influência social também se faz presente e os meios de comunicação de massa deslocam os valores para as imagens, promovendo um culto exacerbado a um padrão a ser conquistado por todos.

 

DIAGNÓSTICO DE ANOREXIA

A anorexia nervosa apresenta três características essenciais: 1) uma restrição persistente da ingesta calórica, o que leva a uma massa corporal abaixa do esperado para a idade, gênero e estágio do desenvolvimento, compromentendo a saúde física; 2) um medo intenso de ganhar peso; 3) uma perturbação na percepção da própria forma corporal.

A estima das pessoas com anorexia nervosa está intimamente relacionada com suas percepções da forme e peso corporal. A perda de peso é visto como algo não só desejável, mas uma ambição a ser satisfeita, e o ganho de peso por sua vez é compreendido como um fracasso inaceitável.

Outra característica marcante é que raramento esses pacientes irão reconhecer os perigos que a perda de peso acarreta, ignorando as implicações à sua saúde, carecendo de insight acerca do problema. Outros aspectos associados à anorexia nervosa incluem angústia de se alimentar em público, sentimento de fracasso, pensamentos inflexíveis, prática de atividade física em níveis excessivos ou práticas de purgação, como vômitos autoinduzidos ou uso indevido de medicações diarréicas ou diuréticos.

A prevalência de anorexia é de 0,4% entre jovens do sexo feminino. A prevalência no sexo masculino é pouco conhecida. Ainda que seja um transtorno característico de adolescentes e mulheres jovens, em casos esporádicos pode se manifestar antes da puberdade ou após os 40 anos.

 

DIAGNÓSTICO DE BULIMIA

A bulimia nervosa se caracteriza por: 1) episódios recorrentes de compulsão alimentar; 2) sensação de descontrole sobre a ingestão, como sentir ser incapaz de parar de comer; 3) comportamentos compensatórios recorrentes a fim de evitar o ganho de peso e 4) uma auto-percepção fortemente influenciada pelo peso e forma corporal. Para caracterizar o diagnóstico, a compulsão alimentar e os comportamentos compensatórios devem ocorrer há peo menos três meses com uma frequência de no mínimo uma vez por semana.

A compulsão alimentar édefinida como a ingestão de uma quantidade de alimento maior do que a maioria dos indivíduos consumiria em circunstâncias semelhantes, ocorrendo em um período curto de tempo, normalmente menos do que duas horas. A compulsão é tipicamente acompanhada de uma perda de controle e incapacidade de abster-se ou parar de comer depois de começar, e tipicamente só para quando provoca um desconforto significativo à pessoa. A compulsão alimentar geralmente ocorre em segredo, ou da forma mais discreta possível, e o indivíduo se empenha para escondê-la dos demais.

Os comportamentos compensatórios, denominados também de comportamentos purgativos, incluem atos como o vômito forçado, o mais comum deles, mas também, uso de laxativos ou diuréticos ou outras medicações que possam causar perda de peso, como uso indevido de hormônio tireoidiano.

Os indivíduos com bulimia nervosa geralmente estão dentro da faixa do peso normal. Entre os episódios de compulsão é comum o indivíduo apresentar uma ingestão restrita de calorias, consumindo pequenas porções de alimentos hipocalóricos e evitando aqueles com excesso de açucares e gorduras.

A prevalência é maior do que aquela descrita para a anorexia, sendo de 1 a 1,5% entre jovens do sexo feminino. Pouco se sabe sobre a prevalência em homens. Assim como a anorexia é mais comum na adolescência e idade adulta jovem.

 

TRATAMENTO DAS ANOREXIAS E BULIMIAS

Os transtornos alimentares, por envolverem aspectos orgânicos, psíquicos e relacionais, demandam uma abordagem em equipe. Atualmente os centros especializados em transtornos alimentares contam com equipes interdisciplinares, compostas por médicos clínicos, psiquiatras, psicólogos e nutricionistas, criando uma abordagem que contemple as múltiplas necessidades individuais.

A psicofarmacologia se mostra pouco eficaz, e intervenções psicoterapêuticas constituem, na maioria dos casos, a base do tratamento. O tratamento clínico deve ser adaptado às alterações clínicas e nutricionais de cada indivíduo. A maior dificuldade é a recusa dos pacientes em reconhecer a gravidade dos seus hábitos, estando indispostos a abrir mão dos mesmos. A oposição dos pacientes acaba levando a equipe assistencial às abordagens coercivas e intimidadoras. Atitudes parcimoniosas mostram em geral serem mais epicazes que esses tratamentos compulsórios.

Em 1973, Hilde Bruch, no livro Eating Disorders: Obesity, Anorexia Nervosa, and the Person Within, propôs a criação de um “contrato de peso”, a ser realizado no início do tratamento. O contrato consiste numa promessa mútua onde o paciente se compromete a não perder mais peso e, em contrapartida, o médico não fará exigências quanto à necessidade de ganho de peso. Essa abordagem desloca o foco do entendimento dos transtornos alimentares como sendo unicamente um problema relacionado ao peso e a ingestão alimentar. Ela valoriza o subjetivo e as questões relacionadas à gênese do distúrbio e evita medidas excessivamente coersivas e opostas à vontade do indivíduo.

Ainda que os critérios diagnósticos façam uma divisão homogênea e arbitrária, é importante considerar a grande variabilidade de apresentações que a anorexia e a bulimia assumem, podendo-se entendê-las como plurais e únicas em cada paciente. Dessa forma não há um tratamento padrão, aplicável a todos os casos, e a base de qualquer abordagem escolhida deverá ser a relação médico-paciente e a valorização das singularidades de cada caso, aprendidas com essa relação, em consonância com os fundamentos da palavra clínica.